...isso é apenas um ensaio...

"Tudo Vale a Pena Quando a Alma não é Pequena!"
Fernando Pessoa

terça-feira, 27 de abril de 2010

Adeus Dr. Zé


Desculpem a minha lerdeza, não me apresentei, me chamo Rick e sou músico / cantor / ator / palhaço de circo e mecânico de autos nas horas vagas, sou casado com a afilhada do Doutor Zé (a Gorethy, uma flor de formosura) pra mais de cinco anos e o nosso padrinho de casamento foi o Doutor Zé e o seu Luciano (nossa, que veio bom!). Depois daquele dia o povo vivia me chamando pra cantar em velório a musica dos “Titãs” chamada “Enquanto Houver Sol”, como uma homenagem póstuma pro falecido, mas ninguém levantou não, só eu que levantei uma grana e comprei uma casa nova e uma bicicleta. O Doutor Zé e seu Luciano faz tempo que vivem rindo do povo, de vez em quando chega um turista e a gente conta a história do Doutor Zé e o povo não acredita.

Mas o Doutor Zé morreu (de verdade), dessa vez só por precaução, o Prefeito e o Padre esperaram o Doutor Zé ficar fedendo e não deixaram eu cantar nem o seu Luciano falar com ele, morreu com mais de cem anos, viveu bem o Doutor Zé.

Enquanto Houver Sol



Ainda com o galo cantando na cabeça me aproximei do caixão que muito vistoso dava até pena de enterrar, muitas flores e mensagens que não acabavam mais, tinha um monte de história pra contar e não me lembrava de nenhuma, então eu resolvi cantar uma música dos “Titãs” chamada “Enquanto Houver Sol”, como uma homenagem póstuma. O estranho dos funerais é o fato de você ir para se despedir de alguém que pensa conhecer, e lá descobre outra pessoa que nunca poderia supor que existia, tudo isso faz você sentir mais saudade e desejar com todas as forcas que aquela pessoa não tivesse morrido. Pois é, as vezes acontece...

Enquanto eu cantava a música, o Doutor Zé levanta se mexe dentro do caixão, depois começa a tirar as flores do rosto e o algodão do nariz (eu continuava cantando, empolgado!) e de repente ele senta dentro do caixão e depois se ajeita e pula pra fora. No inicio eu achei que o povo tava tudo bravo comigo e tava indo embora por causa da música (as vezes eu desafino), mas depois que todo mundo começou a correr e passar um por cima do outro, como se tivesse visto visagem, eu olhei pra trás e vi o Doutor Zé do meu lado (isso não foi legal!), foi quando eu descobrir que um homem crescido pode se mijar nas calças e sair correndo feito criança. Eu corri até em casa e me escondi debaixo da cama, mas teve gente pior, teve gente que pulou pela janela, nunca teve tanta gente na igreja como nesse dia se escondendo do podre Doutor Zé, dizem que tem menino que não passa perto do Palácio ou de funerária porque acha que o Doutor Zé vai querer correr atrás dele, seu Luciano ficou rindo do povo e dando bengalada na cabeça dos outros até não ter mais ninguem (velho doido).

Dona Miudinha


Deixei o povo na praça e voltei pra fila, resolvi encara - lá antes que mais gente chega-se, não demorou muito (cerca de duas horas e meia), estava já bem perto da escadaria do Palácio, que mais parecia arquibancada de futebol, me sentei ao lado de um velho acompanhado de uma moça, perguntei por que não entrava direto dada a sua idade avançada, ao que me responde o mal educado: “-- Velho é seu avô!” A moça riu e repreendeu o mal humorado, depois de pouco tempo, alguns degraus acima, o velho rabugento me pergunta se conhecia o Doutor Zé (pergunta tola) e por que estava ali, fiz de conta que não era comigo, levei uma bengalada na cabeça que fez galo e o pior, não podia nem brigar com o velho doido. Entre o galo na cabeça e o caixão foram outros quarenta minutos, já na porta eu entendi por que demorava tanto, todo mundo que ia contava uma (to sendo tão bonzinho, uma!) história do Doutor Zé, algumas até bem engraçadas e outras muito comoventes, o velho doido se chamava Luciano, era como se fosse irmão do Doutor Zé, tinha sido compadre e amigo quase que a vida inteira, o velho resmungão foi contar como o Doutor Zé ajudou o filho dele a nascer.

Que o Doutor Zé era gente fina todo mundo já sabia, era o padrinho perfeito, mas o primeiro afilhado foi o filho do velho doido (seu Luciano Pereira), que também era funcionário do Tribunal na época do Doutor Zé, naquele tempo não tinha muito isso de levar mulher buchuda pra hospital na hora do filho nascer, era o padrinho que ia buscar a parteira no quinto dos infernos, rezando pra mulher não ter ido atender outra buchuda, mas nesse dia o Doutor Zé tava sem sorte (nesse tempo não tinha carro e nem telefone), tinha de ir atrás da parteira de bicicleta, foi na casa de duas e não conseguiu nada, com a indicação da terceira, que era certeza estar em casa, foi no rumo da periferia (isso é bem longe) no encalço de Dona Miudinha, ao chegar a boa noticia a parteira tava em casa, entrou e esperou um pouco, aflito e nervoso queria logo botar Dona Miudinha na garupa e seguir caminho no rumo da casa do compadre Luciano, ao que aparece na porta a singela senhora (1,65cm de altura e 109kg) que mas parecia um tatu, Doutor Zé que nessa época era magrinho feito um pau de sebo, carregou Dona Miudinha na garupa quase duas horas, colocando os bofes pra fora, parecia um burro de carga urrando a cada pedalada. Enfim chegaram e Dona Miudinha ajudou o menino a nascer (batizaram o podre de Ermenegildo) e foi uma festa só, no meio dos abraços e da folia, Doutor Zé pegou o afilhado no colo, sem jeito parecia que ia derrubar o pequeno no chão, quando chega perto Dona Miudinha, dizendo: -- “Vamo seu menino, que amanhã tenho de acordar cedo!” Doutor Zé olha a senhora (imagine a Dona Miudinha) e lhe pergunta se ela sabe andar de bicicleta, ela diz que sim, ao que Doutor Zé dá a bicicleta de presente como agradecimento por ter ajudado a nascer o afilhado. Todos na sala riram e o velho rabugento com um sorriso no rosto olha o amigo e diz: -- “Besta, eu tinha levado a gorda mas não tinha dado a bicicleta!”

O Padre


Enquanto o podre coitado se erguia (quase chamei um guindaste), um homem sisudo todo vestido de Padre se aproximou, perguntou se alguém ali era da família, ao que uma velha senhora lhe disse que o falecido não tinha filhos ou família, cabisbaixo perguntou do que tanto ria-mos, a mesma senhora lhe contou a história, ele riu timidamente e tomado por um sorriso se apresentou como Capelão Oliveira do Exército Brasileiro, sisudo e formal, contou que serviu no quartel do Rio de Janeiro, onde o Doutor Zé também havia servido e lá escutou muitas histórias, como das inúmeras reclamações sobre o menino matuto que não sabia nada da vida e vivia fazendo as coisas pros outros recrutas, apanhava de soldado a general, pior que burro velho empancado na estrada, todos diziam que ele mais parecia uma topeira (todos riram).

Uma das historias que mais ouvia na época de quartel além das reclamações do recruta dezenove (número do doutor Zé no quartel), era a do dia que um certo Coronel linha dura resolveu fazer uma visita surpresa no quartel, cinco horas da manha os guardas e oficiais empurraram a porta do alojamento aos berros, tinha tanto oficial com estrelas no uniforme que parecia o céu em noite de lua, inspeção minuciosa e silêncio sepulcral, alguns berros pra variar e o pior aconteceu, no fim do alojamento o sargento grita: “—Senhor! Recruta 19 ausente, Senhor!” O Coronel olha e não acredita, cama arrumada, farda no armário, botinas engraxadas, tudo certo e como deve ser, extraordinário, mas cadê o recruta? Chama a Policia do Exercito, trás os cães e coloca os recrutas pra procurar e reviraram o quartel de cima a baixo em quatro horas e nada, nem sinal do recruta dezenove. Acontece que naquele dia (23 de Abril) era o dia de São Jorge, santo de devoção do recruta dezenove, como o quartel ficava muito longe da cidade, Doutor Zé resolveu deixar tudo arrumado e sair na madrugada pra ir até a Igreja e rezar, menino do interior quando viu a festa esqueceu que tinha mãe ou pai, que tava no exercito e ficou até anoitecer. Quando acabaram os festejos conseguiu uma carona de volta pro quartel e ao chegar foi recebido com voz de prisão, jogaram o dezenove no cadeia e foram avisar o coronel, ninguém tinha tomado café, almoçado ou comido qualquer coisa e nem iriam até achar o recruta dezenove, quando o Coronel perguntou onde ele estava o Doutor Zé (recruta) disse que tava na festa de São Jorge e mostrou a medalhinha que tinha comprado, o Coronel ficou tão chocado que não acreditou, gritou esbravejou quebrou até o dedo mindinho da mão direita de tanto bater na mesa, mas o recruta era tão “topeira” que o Coronel acabou acreditando, já mais calmo mandou soltar o dezenove e mandar servir a comida, estavam todos tão aliviados do recruta estar vivo que nem lembraram de dar um castigo e os demais de comerem que até lhe agradeceram por ter voltado.

O Gordo


Muita gente conversava e outras só falavam, era verdadeiramente uma torre de babel (leia-se praça), no meio dessa confusão chega perto de mim um podre coitado, gordo como um porco cevado, ele transpirava tanto que a blusa de algodão azul clara que vestia (cor original da fabrica) estava azul escuro e o terno preto com a gravata apertada no pescoço, mais parecia que tava pagando promessa pra santo que prestando uma homenagem ao falecido, sentou ali mesmo no chão, tirou uma toalhinha do bolso, que fora torcida repetida vezes que só não criou um lago ali na sua frente, porque o sol tava tão quente que o suor evaporou em dois tempos. O nome do pobre diabo eu não sei (infelizmente), mas depois que ele conseguiu evitar um infarto, danou-se a rir sem parar, e quase não conseguiu se controlar, logo uns três cabras do sertão se ajuntaram na frente dele e perguntaram de quem o desinfeliz tava rindo, entre um riso o pobre contou uma história que todos começaram a rir também. 

O infeliz do quase morta da blusa azul contou quase apanhando que era advogado, colega de faculdade do Doutor Zé, quando ele era presidente da OAB-PI convenceu o amigo a se candidatar ao quinto constitucional (confesso, eu não faço a menor ideia do que seja),  Dr. José (nome que usava no Forum), era muito popular e todos gostavam dele, apesar de tudo isso no dia da eleição tava perdendo de lavada, aí, João das Codornas, dono do taberna onde o Doutor Zé sempre almoçava, viu ele calado, triste amuado, coisa que nunca se tinha pensado, na simplicidade que lhe era peculiar Zé simplificou pra João: "-- Oh João, me candidatei a presidente e to perdendo feio, só um milagre pra mudar isso". Pronto! Não precisava de mais nada, João devoto de nosso Padrinho Pe. Cicero, espalhou a noticia pro Mercado e bairro de São Miguel inteiro: "-- O Doutor Zé quer ser Presidente do Brasil, vamos votar minha gente!". Danou-se disse o gordo, era tanta gente com titulo na mào indo nas escolas, na delegacia, enfim encontraram na porta da sede da OAB uma faixa onde dizia: "urna de votação", pior que fofoca de comadre, um mundo de gente invadiu a OAB, nem policia nem santo tirou esse povo de lá, tiveram de chamar o podre do Dr. José pra explicar, e ainda hoje tem gente revoltado com os comunistas, porque não deixaram eles votarem no Doutor Zé para Presidente do Brasil.

Doutor Zé e suas Estórias


O Sr. José de Araujo Arniqueiras dos Santos e Borges da Silva Neto, serventuário de carreira do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (aposentado), advogado das antigas, formado no Rio de Janeiro (quando ainda era a Capital do Brasil), residente na Villa Dona Esmeralda, Casa 07 – Térreo, Rua do Mercado, 1313, Bairro de São Miguel, Teresina-PI, também conhecido como “Doutor Zé” era um homem moreno (na verdade negro, daquele bem negrinho) que sempre tinha tempo de sobra, seja pra uma consulta ali na porta ou uma fofoca, viúvo sem filhos, cristão devoto de São Jorge, tinha uma saúde de ferro, ninguém nunca soube dele doente, era alegre e sorridente como ele só, gostava de dançar e contar piada, nenhum moleque sabia mais piada que ele, diziam nas redondezas que tinha escrito piadas até para o Costinha, mas isso ele nem nega nem confirma.  “Doutor Zé” era um homem bom, encrenqueiro como nunca se viu, mas ainda assim um homem bom, perto dele menino (ainda que traquino) não apanhava, policial não se preocupava com nada, era o rei do Mercado e do bairro de São Miguel. Outro dia estava refestelado no sofá, quando vi a notícia no jornal, ele tinha morrido, noventa e dois anos de idade, não imaginava que fosse tão velho, fui até o enterro, coloquei o meu melhor terno para ir ao Palácio do Governo, luto oficial, guarda de honra, umas mulheres chorando canto e crianças brincado no meio da rua, tantas homenagens nem parecia que era advogado, parecia mais um Chefe de Estado. A fila estava tão grande e o sol a pino rachava até molera de jegue, o jeito foi achar um sombra e esperar, debaixo de um pé de não sei o que, fiquei escutando o povo contar as ‘estórias’ do falecido Sr. José de Araujo Arniqueiras dos Santos e Borges da Silva Neto, vulgo “Doutor Zé”.